O assistencialismo e a primeira rede médica em Montalvão

1. O assistencialismo em Montalvão 

No artigo inserto neste mesmo portal, sob o título “O assistencialismo, essência da espécie humana, e a sua estruturação social”, procurámos contextualizar o surgimento do mesmo, lato senso, com o propósito de tentarmos compreender e enquadrar, de certo modo, o aparecimento da “novidade assistencial” em Montalvão e, decorrentemente, da criação da sua multicentenária Santa Casa da Misericórdia, já que nada acontece por acaso, muito menos um fenómeno desta natureza, com tão grande repercussão social e nas populações. 

A compreensão e o devido enquadramento do “fenómeno assistencial”, facilmente nos permite concluir que a instituição misericordiosa de Montalvão não foi fruto de uma decisão fortuita, individual ou coletiva, localizada no antigo burgo montalvanense, por muito voluntarioso, bem-intencionado e, sem qualquer dúvida, altamente meritório que fosse um gesto desses. Tal não significa, porém, que os antepassados de Montalvão não fossem generosos e totalmente apetentes a ajudar o seu semelhante, como eram, sem sombra de dúvida, fazendo jus, aliás, ao espírito de solidariedade cristã, próprio de católicos praticantes, tão enraizado na época, e ao instinto gregário próprio de gente de bem e da espécie humana - conforme desenvolvemos no artigo acima citado. No fundo, para que não restem dúvidas, foi graças a isso que a mencionada instituição, foi constituída e se tem conseguido manter ao longo dos seus cerca de quinhentos anos de existência. 

A questão, por conseguinte, está em saber se antes do “assistencialismo formal e institucional”, como passaram a ser as Misericórdias, incluindo a de Montalvão, já aqui se praticava o assistencialismo ou se tudo começou a partir da sua criação. A resposta só pode ser afirmativa, no sentido de que já antes, embora não haja registos conhecidos de quanto antes, já se praticaria o assistencialismo em Montalvão, como seria natural que acontecesse, à semelhança da generalidade das povoações.

Só isso explicará a existência da primitiva albergaria, situada em edifício anexo à Igreja da Misericórdia, a qual terá lugar ao posterior hospital, embora com proporções e organização modestas, na justa proporção da dimensão demográfica que Montalvão teria à época.

Voltando a citar o artigo acima referido, como ali se explica, a partir do reinado de D. João II e por sua especial influência, depois continuada por D. Manuel I, seu sucessor, e por sua viúva - a Rainha D. Leonor -, a política assistencial em Portugal adquiriu um cariz totalmente diferente, para melhor, em relação ao que acontecia até aí.

Para colmatar as enormes deficiências de organização e de financiamento da prática assistencial o Estado passou a assumir um papel determinante, tomando o lugar da iniciativa privada, já que esta não dispunha, nem podia dispor, bem entendido, dos mesmos recursos que o Rei.     

Foi no âmbito desta nova política que os hospitais substituíram, gradual e obrigatoriamente, as albergarias e que os pequenos hospitais foram agregados e integrados em unidades com maior capacidade e centralidade.

D. João II foi o responsável e o grande impulsionador daquelas medidas, com destaque para a criação do primeiro hospital em 1492 (seis anos antes da criação da primeira Misericórdia Portuguesa, a de Lisboa, por sua viúva, já nessa altura, D. Leonor), o Hospital Real de Todos os Santos, em Lisboa, que acabou por ficar irremediavelmente destruído após o terramoto de 1755.

Em 1495 (ano da morte do Rei D. João II, em 25 outubro), seria criado pela Rainha D. Leonor o Hospital de Caldas da Rainha.

Tanto estes, como outros hospitais fora de Lisboa foram autorizados por bula do Papa Inocêncio VIII, de 21 janeiro 1485.

Pode-se presumir que a substituição do albergaria por um pequeno hospital em Montalvão, tenha decorrido do conjunto de medidas instituídas por D. João II e continuadas por seu primo e sucessor D. Manuel I, não esquecendo que foi este monarca que outorgou, a par de outros, o novo Foral de Montalvão, há um pouco mais de quinhentos anos. 

 

2. Organização da rede assistencial - os primeiros profissionais da saúde em Montalvão 

Como vimos antes, a propósito da referência a D. João II e D. Manuel I, tornou-se evidente a intervenção do poder central, ou seja, do Rei, …”  nos hospitais e nas profissões ligadas à saúde, no combate às epidemias e nas misericórdias” …[1] , muito provavelmente muito inspirada no que se passava em outros países europeus, em particular em Itália, com quem tínhamos relações privilegiadas.   

Efetivamente, em algumas cidades do norte da Europa verificaram-se, em especial a partir do fim da Idade Média (séc. V a XV) e do dealbar da Idade Moderna (séc. XVI a XVIII) uma relevante preocupação por parte das autoridades em organizar a rede assistencial e, decorrentemente, em investir na formação científica e subsequente “contratação de profissionais da saúde para o serviço público, sobretudo na vertente domiciliária[2]. Isto, também em resultado de uma procura crescente de cuidados médicos e assistenciais, por parte da população.  “Portugal acompanhou essa evolução implementando no terreno uma estrutura organizada e planeada com algum rigor” … “em articulação com as misericórdias” …[3], conferindo a uma tal rede de assistência, características institucionais, articulando o poder central e o local, nomeadamente os municípios. Com o envolvimento da Universidade de Coimbra, “o objetivo consistia em dotar o país de estruturas gratuitas de apoio social e médico aos pobres”.[4]  

Uma vez mais, o excelente livro da Professora Laurinda Abreu, onde maioritariamente nos socorremos, trata esta matéria de forma abundante e aprofundada, ficando aqui o que nos parece essencial para melhor enquadramento do que sucedeu em Montalvão. 

No capítulo “5.1 Médicos e boticários para servir nas periferias: a rede médica”,[5] começa por referir-se que “A decisão de imputar aos concelhos responsabilidades no aumento do número de médicos academicamente formados através da criação de um sistema de bolsas de estudo terá partido do governo de D. Sebastião, que, por diploma de 1568, dirigido a 74 municípios, distribuídos por 15 comarcas, os obrigava a custear as despesas anuais de 30 alunos de medicina na Universidade de Coimbra”…[6]. Política esta prosseguida e aprofundada por Filipe I, acrescentando a especialidade de boticário e o número de formandos. 

Ainda naquele capítulo, são apresentados três mapas[7] onde Montalvão, embora não de maneira expressa, aparece graficamente assinalada, como se explicita: “Mapa 1 – Municípios nomeados para financiar a formação de médicos e boticários (1568-1606)” – a Montalvão corresponderia o pagamento de 3000 a 9999 réis;[8] “Mapa 2 – Partidos camarários (1568-1606)” – Montalvão cirurgiões, médicos e boticários;[9] “Mapa 3 – Municípios nomeados para financiar a formação de médicos e boticários (1568-1606); misericórdias (1498-1606) 

Para cabal esclarecimento desta importante matéria para Montalvão, mediante correspondência eletrónica trocada com a Profª. Laurinda Abreu, e por sua especial gentileza, recebemos o seguinte texto relativo a Montalvão, que transcrevemos na íntegra, com a devida vénia e grande reconhecimento:[10] 

“Em 15 de Junho de 1622, a Câmara, através dos seus oficiais, pediu para ter um partido de medicina de 24.000 réis e outro de boticário de 10.000 réis: a Vila tinha 400 vizinhos em seus Montes e Termos e os médicos encontrarem-se a mais de 4 léguas de distância da vila e não se deslocavam lá por menos de 2.000 réis. Não referem qualquer indivíduo. (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria de D. Filipe III, liv. 18, fl. 10v) 

“Temos ainda referência a alguns cirurgiões com as licenças para curar de medicina (2 para os finais do séc. XVI e 3 para o séc. XVIII).

Temos apenas 7 indivíduos que são naturais de lá (6 cirurgiões [2 deles com licenças para curar de medicina] e 1 boticário). Apenas 5 referem que moram lá (inclusive aqueles 3 dos que têm licenças para curar de medicina]. Destes apenas 1 não é natural da região.

Não temos notícias de médicos, boticários ou cirurgiões durante todo o séc. XVII.” 

E no seguimento de nova troca de correspondência, por correio de 3 /09 /2016, foi remetida a seguinte informação complementar (dados pesquisados pelo doutorando Luís Carlos Gonçalves): 

…” alerto para o facto de estes cirurgiões não terem formação académica (isto é, não são cirurgiões no sentido actual do termo, mas sim de formação empírica. Quando recebem cartas para "curar de medicina" tal significa que terão um campo de intervenção muitíssimo limitado (pelo menos perante a lei), quer do ponto de vista das funções curativas, quer das áreas geográficas onde actuarão (neste caso, apenas Montalvão -  um indicador de que a comunidade não deveria ter médico.  

Ainda por pesquisa do Dr. Luís Carlos Gonçalves e gentileza cedência da Profª. Laurinda Abreu, foi-nos remetido o mapa com dados dos cirurgiões e Boticários que exerciam a profissão em Montalvão nos anos de 1568; 1705; 1731; 1743; 1753; 1802; 1803; 1806 e 1807 (v. anexo). 

 Mapa de Médicos em Montalvão.pdf 


Luis Gonçalves Gomes, 22 março 2017
(texto revisto em 14-01-2018)


[1] “O Poder e os Pobres”, Laurinda Abreu, Edições Gradiva, 1ª edição agosto 2014, p. 13
[2] “O Poder e os Pobres”, Laurinda Abreu, Edições Gradiva, 1ª edição agosto 2014, p. 117
[3] Idem.
[4] Ibidem, p. 118
[5] Ibid. P. 119 a 129
[6] Ibid. P. 119
[7] Autoria do Dr. Luís Carlos Ribeiro Gonçalves
[8] “O Poder e os Pobres”, Laurinda Abreu, Edições Gradiva, 1ª edição agosto 2014, p. 120
[9] Idem p. 123
[10] Correio de Laurinda Abreu para Luís Gomes, de 31-08-2016.
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