1. Os primórdios do assistencialismo
Numa análise simplista, o Homem só tem sobrevivido ao longo dos tempos, graças ao seu instinto gregário, o mesmo sucedendo, aliás, com outros seres vivos. É, de certo modo, uma forma instintiva e intrínseca à proteção e conservação das espécies, como muito bem classificou Charles Darwin[1].
No caso da espécie humana, a respetiva sobrevivência deveu-se igualmente à inteligência racional de que é dotada e, não menos importante, ao espírito de solidariedade e de entreajuda, caraterístico do gregarismo.
Portanto, quando falarmos de assistencialismo e procurarmos encontrar as suas origens, teremos certamente de as ir buscar à época mais remota da pré-história. Só que tal “assistencialismo” - no sentido de auxílio de uns em relação a outros –, nos seus primórdios, era uma forma anárquica de o fazer, não organizada e não sistematizada, fruto da premente necessidade de suprir necessidades básicas e imediatistas. Era, em suma, o puro instinto de sobrevivência que prevalecia e o determinava, há mais de 4.000 anos antes do nascimento de Cristo (a.C.).
A evolução sucessiva da espécie humana, o inerente crescimento demográfico e o decorrente progresso e organização social, acarretando situações e necessidades cada vez mais complexas, exigiram da sociedade, no seu todo, e especialmente dos poderes instituídos, respostas concretas para os múltiplos problemas que foram surgindo, através da criação de uma sociedade mais estruturada e formal.
Nos princípios da Idade Antiga - compreendida entre 4.000 anos a.C. e 476 d.C. -, mais precisamente no antigo Egipto, a assistência praticada já nessa altura - há cerca de 3.000 anos a.C. - pelas designadas “confrarias do deserto”[2] é tida como pioneira da que veio a ser exercida nas épocas subsequentes. Tais confrarias eram de inspiração religiosa, tendo como membros os “sacerdotes de Amon”, e tinham como preocupação primordial prestar apoio aos “caravaneiros”, nos mais variados aspetos da sua caminhada pelo deserto[3]. Não pode haver maior analogia com o tipo de apoio prestado aos peregrinos pelas confrarias religiosas ou laicas da Idade Média (476 d.C. a 1453 d.C.).
Para além daquelas necessidades, digamos normais, suscitadas pela natureza do Homem - comuns a todas as épocas e indistinta das classes sociais que se foram desenvolvendo e estratificando -, a frequência das guerras, por motivos vários (cruzadas, ambição de conquista e de expansão territorial, de tipo religioso ou, infelizmente até, por razões bem comezinhas, resultantes da torpe ambição humana de acumulação de poder e riqueza), para além do horror e da destruição patrimonial que lhes são próprios, originou, em especial nas camadas mais baixas da sociedade, uma imensa multidão de órfãos, viúvas e inválidos, e uma pobreza extrema, carecendo de atenção e reclamando, consequentemente, por ingente auxílio.
As necessidades materiais e morais são transversais, de facto, a todas as épocas e contextos económicos, sociais, políticos e religiosos, significando sempre a mesma coisa, ou seja, um bem identificado tipo de carência, ao passo que a “assistência” (no sentido de auxílio, socorro…, seja do que for e onde quer que isso falte ou, dito de outro modo, …”onde quer que haja um homem”… ) para lhes fazer face, tomou formas distintas, em função das mutações de “contexto histórico, geográfico e social.”[4], resultantes, como não poderia deixar de ser, da inexorabilidade da vida.
Nos fins da Idade Média e período subsequente, a situação de miséria afetava 30 a 50 % da população europeia.[5] Perante esta dramática realidade, a prática da assistência era entendida pelas autoridades, em sentido lato, como um fator de coesão social e tornou-se para muitos uma aliciante oportunidade de obtenção de rendimentos e de outras regalias, que dificilmente conseguiriam fora do “assistencialismo”. Como exemplo desses prosaicos modos de vida, temos o caso das “amas dos expostos” ou, mais prosaico ainda, dos “mamposteiros”, os quais, graças aos peditórios que realizavam em favor dos pobres, não só se livravam de trabalhos fisicamente mais violentos, obviamente muito comuns na época, como ficavam isentos do pagamento de impostos.[6] Mais aliciante não podia ser, na verdade!
Por outro lado, por parte dos assistidos, não é menos curioso constatar que para além dos genuinamente carenciados, também havia os que se aproveitavam oportunisticamente do “sistema” assistencial. De tal modo, que quem providenciava a assistência, de uma forma institucional ou a título particular, se viu obrigado a estabelecer o estrito conceito de “pobre merecedor”, no qual se basearam as políticas sociais na Europa da Época Moderna[7] (1453 a 1778 d.C.). O excelente livro[8] da Professora Laurinda Abreu, aqui bastas vezes citado, desenvolve abundantemente esta e outras interessantes temáticas a tal respeito.
Como já referido antes, a pobreza, ou melhor, a extrema pobreza, estava muito disseminada pela população, preocupando-se as organizações institucionais - de cariz religioso ou político, e os próprios cidadãos, mais ou menos organizados -, em estabelecer um sistema assistencial impeditivo de os pobres carenciados e as famílias necessitadas caírem na miséria e na indigência. Assim se procurava combater o risco da desagregação familiar, da propagação da doença e da marginalidade social. Neste contexto, as Confrarias (de inspiração religiosa ou laicas) tiveram um papel essencial nesse combate, por meio do apoio às populações desamparadas.[9]
Os anos vividos durante os primeiros tempos da nação portuguesa, e por mais alguns séculos, não foram propícios à criação e, sobretudo, à distribuição de riqueza, nomeadamente pela plebe. Uma vez mais, a sucessão de conflitos, no âmbito da reconquista cristã e da expansão do território, ocupando a força humana disponível e capturando energias, não deixou margem para o cultivo das terras e a decorrente produção dos bens alimentares, exigidos por uma população em crescimento acelerado. A crise económica espalhava-se pela Europa. Vivia-se igualmente o terror da famigerada peste negra, que tanta devastação humana causou. Não é, pois, de estranhar que num quadro económico tão depressivo - prolongando-se pelos séculos XIV e XV - grassasse a miséria e a vagabundagem.
Como é evidente, uma tal situação preocupava, e de que maneira, os poderes instituídos, nomeadamente a autoridade máxima, que era o Rei. De tal modo, que reinando D. Afonso II (1185 - 1223), entre 1211 e 1223, promulgou o mesmo o “Livro das Posturas”[10], logo no primeiro ano do seu reinado, o que significa que procurou satisfazer, logo no início, uma preocupação que já o antecedia, relacionada com o combate à vagabundagem.
Século e meio mais tarde, em 1375, D. Fernando I, através da “Lei das Sesmarias” [11] - legislação de âmbito e alcance muito vastos -, pretendeu inverter, entre outras coisas, a tendência da fuga da população dos campos para as cidades, dispondo no sentido de fixar a mão-de-obra nas zonas rurais, a fim de aumentar o cultivo das terras e contrariar o despovoamento rural. Para isso, não só ordenou aos proprietários tal cultivo, sob risco de expropriação se o não fizessem, como determinou que os homens e mulheres sem ocupação e que se encontrassem pedindo ou vagabundeando, fossem obrigados pela justiça a servir na lavoura ou em outros ofícios, de igual modo fisicamente exigentes. Daí o interesse, em parte, de se furtarem a isso, servindo como “mamposteiros”, como mencionado atrás.
Enquanto o poder régio se ocupava, como lhe competia, aliás, a criar a legislação necessária, com incidência na organização da sociedade, outras instituições, como dissemos antes, essencialmente de natureza religiosa – por exemplo, as Confrarias[12] e Irmandades, também designadas por Fraternidades - ou as laicas, mas igualmente inspiradas por valores cristãos, passaram a ocupar-se voluntariamente da assistência aos desvalidos da sorte, aos inválidos, aos órfãos e viúvas de homens falecidos ao serviço do reino, entre outros.
Procurando resumir e sistematizar a …” história da Assistência em Portugal até finais do século XIX”[13], podemos dividi-la nos seguintes três períodos:
1º Desde a fundação da nacionalidade até finais do séc. XV: a “assistência” está cometida a instituições de beneficência (de inspiração religiosa, militar, confrarias de ordem profissional, municípios ou da iniciativa de particulares com posses – nobres, por suposição), que a praticam não só para auxílio e socorro genuínos aos necessitados, como, mais prosaica e egoisticamente, para salvarem a própria alma, preocupação esta muito exacerbada na época medieval, como é sabido.
Outra caraterística deste período é a criação e existência de “albergarias” - como o próprio nome indica, para albergar e prestar auxílio aos peregrinos (em grande número na idade média), e também de “hospitais” (mais tarde instituídos por D. João II e D. Manuel I, como substitutos daquelas) ou ainda de “gafarias” para acolhimento de leprosos ou, finalmente, das “mercearias”[14].
Tais instituições estavam desprovidas de estatutos e de receitas próprias, eventualmente provenientes do Estado, uma vez que este, neste período, não tinha qualquer participação no campo assistencial. Subsistiam graças às esmolas e doações que lhes eram feitas.
2º Desde o reinado de D. João II, até ao séc. XIX: por especial influência deste Rei e do seu sucessor D. Manuel I (a que igualmente não é alheia a Rainha D. Leonor - viúva do primeiro) o Estado assume papel relevante, tendendo a substituir a iniciativa privada, necessariamente menos sustentável.
Como referido no ponto anterior os hospitais tomaram gradual e imperativamente o lugar das albergarias. D. João II foi o primeiro grande responsável e o grande impulsionador dessa medida.
A preocupação em agregar os pequenos hospitais e integrá-los em unidades maiores e com maior centralidade, levou à criação dos grandes hospitais – o primeiro em 1492, o famoso Hospital de Todos os Santos, em Lisboa, em local correspondente à atual Praça da Figueira (mais tarde destruído pelo devastador terramoto de 1755) e o de Caldas Rainha, três anos mais tarde.
Obs: poderá ter sido assim que supostamente a primitiva albergaria existente em Montalvão, em edifício anexo à Igreja da Misericórdia, deu lugar ao posterior hospital, embora com proporções e organização modestas. Veja-se a propósito, noutro artigo, a questão da primitiva rede médica em Montalvão.
Hospital de Todos os Santos; Hospital Real de Todos os Santos; Hospital Grande; Hospital dos Pobres
https://pt.wikipedia.org/wiki/Hospital_Real_de_Todos_os_Santos
3º A partir do séc. XIX: depois de ter sofrido um sério revés, em termos organizativos, em consequência das invasões francesas (entre 1807-1810), a “assistência” passa a ser suportada financeiramente pelo Estado.
Muito haveria a dizer sobre tão interessante tema, mas a forçosa contenção deste tipo de espaço não o permite. Em melhor oportunidade e em trabalho com outro fôlego, certamente voltaremos a ele.
Luís Gonçalves Gomes, 22 março 2017
(texto revisto em 02-02-2018)